sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Piscator, Inventor do Teatro Moderno

Erwin Friedrich Maximilian Piscator
(Greifenstein, 17 de Dezembro de 1893
Starnberg, 30 de Março de 1966)

Diretor e produtor teatral, um dos mais importantes encenadores alemães do séc. XX. Ao lado de Bertold Brecht fundou o teatro épico.

A contribuição de Piscator para o teatro é qualificada pelos historiadores como a mais inovadora nos palcos alemães durante o séc. XX.

As técnicas usadas por Piscator na década de 20 influenciaram os métodos de produção europeus e americanos.

A sua dramaturgia de contrastes conduziu a um efeito político-satírico e originou o início das idéias do teatro épico.

Na República Federal da Alemanha, o modelo de teatro intervencionista de Piscator atinge o auge novamente nos dias de hoje.

Diversas produções, tentando sintonizar os alemães ao passado nazista tornaram Piscator o inspirador da mnemónica e teatro documentário (teatro baseado em fatos reais usando objetos ou documentos verdadeiros) de 1963 para cá.

Trajetória até a Broadway

Com a ascenção de Hitler, a sua estada na União Soviética deixou de ser profissional e se tornou exílio político.

Mas em 1936 Piscator discorda da política comunista nas Artes e vai a Paris, onde casa com a bailarina Maria Ley em 1937.

Em 1939, o casal segue para os Estados Unidos, onde Piscator já trabalhara com Lena Goldschmidt na adaptação teatral do romance de Theodore Dreiser An American Tragedy, encenado por Lee Strasberg, montado 19 vezes na Broadway.

Em Nova York, Piscator funda em 1940 o Dramatic Workshop, na New School for Social Research. Marlon Brando, Tony Curtis, Judith Malina, Walter Matthau, Harry Belafonte, Elaine Stritch e Tennessee Williams estudaram lá.

Piscator volta para a Alemanha em 1951, e quatro anos depois adapta e encena o romance de Leon Tolstoy Guerra e Paz com temporada em 16 países.

Em 1963 produz a peça The Deputy de Rolf Hochhuth sobre o Papa Pio XII e a alegada negligência no salvamento de judeus italianos das câmaras de gás nazistas.

Até a sua morte em 1966, Piscator tornou-se um grande incentivador do teatro contemporâneo e documentário.

...No lugar do que era o especial tínhamos o típico, em vez do acidente tínhamos a causalidade. Decorativismo deu lugar ao construtivismo. A razão foi colocada em pé de igualdade com emoção, enquanto sensualidade foi substituída pelo didáctico e a fantasia pela realidade documentaria...

O teatro épico teve intenso desenvolvimento na Rússia, após a Revolução 1917, e na Alemanha, durante o período da República de Weimar *, tendo como iniciadores o diretor russo Meyerhold e o alemão Erwin Piscator.

Nesse tempo, as cenas épicas alemãs recebiam o nome de cena Piscator, por causa do uso generalizado de cartazes e projeções de filmes nas peças dirigidas por Piscator.

No entanto, o grande divulgador do teatro épico foi Bertolt Brecht.
O crítico norte-americano Norris Houghton afirma que Brecht e Piscator aprenderam o teatro épico de Meyerhold e que nós o conhecemos através de Brecht.


Brecht reconhece que sempre existiu teatro épico, seja na presença do coro no teatro da Grécia clássica, na Ópera Chinesa e até no Dadaísmo.

No prefácio de Ascensão e Queda de Mahagony (1930), Brecht desenvolve seu raciocínio sobre o teatro épico e descreve 18 distinções entre a forma épica e a forma dramática. Brecht destaca que, na comunicação, escolhe-se por via do sentimento (dramático) ou ao que se persuade através da razão (épico).
Nelson Rodrigues

e o teatro do desagradável:

um olhar simbólico

sobre a vida e obra do autor

por Cristiana Boavista

Psicóloga
e arte-terapeuta

Introdução

Nelson Rodrigues revolucionou o teatro brasileiro, de tal forma, que chega a ser considerado por muitos, o maior dramaturgo nacional, sendo o autor cujas peças são mais montadas na atualidade.

No entanto, nem sempre foi assim. Suas peças retratavam a classe média carioca com a incrível crueza do cotidiano que conhecia tão bem. Essa forma de linguagem não era bem aceita pela crítica ainda influenciada pelos moldes de um teatro mais eloqüente e poético.

Nelson Rodrigues trazia para os palcos a palavra suada de rua, como dizia. E, enquanto filho do modernismo, se defendia:

“Meus diálogos são realmente pobres. Só eu sei o trabalho que me dá empobrecê-los.” (Castro, org.,1997: 47).

Mas além do estilo coloquial, suas peças tratavam de denunciar toda a hipocrisia que pairava sobre uma sociedade vítima da repressão sexual, revelando toda a perversão e deturpação dessa sexualidade latente.

Por flagrar aspectos da sombra coletiva, a obra de Nelson Rodrigues foi muitas vezes mal compreendida, censurada e suas peças tachadas como pornográficas, corrompedoras da família e dos bons costumes.


Os críticos, chocados, não conseguiam enxergá-las em seus aspectos simbólicos, como arte.

Nelson sempre se utilizou de elementos obscenos em seu teatro catártico onde os personagens acabavam possuídos por seu lado mais primitivo.

“A ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”. (id. Ibid.:161).

Através desse trabalho tento fazer uma análise das bases arquetípicas que se relacionam tanto à obra como à própria personalidade do autor afim de compreender o sentido do teatro que propunha enquanto purificador de desejos inconfessos.

A interpretação aqui e a analogia que busquei fazer com diferentes mitos gregos, explicitamente presentes na obra de Nelson, principalmente em Senhora dos Afogados, pretende apenas traçar um esboço de uma personalidade criativa em confronto com questões pessoais que atingem a esfera coletiva.

Tais bases arquetípicas que se relacionam à obra e a personalidade do autor se referem a aspectos patológicos de um homem do seu tempo.


Se pensarmos na etimologia da palavra grega Pathos, paixão, ela parece bem concernente ao homem e dramaturgo que foi.

E aqui vemos a função dos complexos como nos aponta J. Jacoby de “germe criador” cuja função é levar os conteúdos do inconsciente para o consciente e evocar a força criadora deles (1990: 35).
Nas palavras de Nelson:

“Todo grande homem tem que ser obviamente obsessivo. Não sei se me entendem. Mas o ‘grande homem’ é a soma de suas idéias fixas. São elas que o potencializam”. (id. Ibid. 76).

A personalidade de Nelson Rodrigues

“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.” (Castro, org.,1997:12)

Nelson Rodrigues pode ser considerado, de acordo com a tipologia de Jung, um intuitivo com uma função pensamento bastante diferenciada.

O autor tinha a capacidade de mergulhar nas profundezas sombrias e trazê-las a tona de forma brutal num estilo quase que sarcástico como apenas uma pessoa com um forte poder de julgamento e crítica poderia.

O retrato cru dessa natureza instintiva do homem que toca o absurdo, ganha um tom irônico, crítico, característico de sua arte quando trazido para o quotidiano mais banal.

“O aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo a um grande afastamento da realidade palpável, de modo a tornar-se completo enigma até para as pessoas mais chegadas.

Se for artista, apresentará na sua arte coisas extraordinárias, estranhas ao mundo, reluzentes em todas as cores, ao mesmo tempo importantes e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas.” (Jung,1991: 378).

E de fato, a pessoa e a arte de Nelson Rodrigues sempre provocaram estranhamento. Segundo consta em sua biografia, quando menino já possuia certo ar melancólico de afastamento da realidade.

Ao contrário dos irmãos, era avesso aos esportes, sua paixão pelo futebol era apenas de espectador, não se animava a ir à praia e precisava ser subornado para que participasse de brincadeiras na garagem.

“Uma atmosfera de fog envolvia Nelson à medida que ele entrava na adolescência. Estava ficando depressivo, como costumam ficar os meninos nessa idade – só que, nele, essa depressão era dramática, de tango, porque ele só faltava subir num caixote para proclamá-la.

Vivia suspirando pelos cantos e, às vezes, soltava uma exclamação que certamente lera nos livros, mas que ninguém sabia se era sério ou não: ‘Eu sou um triste!’ – uma frase que, aliás, continuaria repetindo pela vida afora”. (Castro, 1992: 40).

Há algo nos estados melancólicos que poderia ser associado arquetipicamente à figura mítica de Saturno/ Cronos. Na alquimia, Saturno estaria relacionado ao chumbo, o escuro e pesado metal e também ao primeiro estágio, a putrefacto e mortificatio, no processo de transformação alquímico.

A figura mítica de Saturno/ Cronos remonta o tema mítico da sucessão do pai pelo filho. Trazido para a dimensão social, se analisarmos diferentes aspectos da figura de Cronos, poderíamos falar da necessidade de confronto com uma estrutura social, cultural que precisa ser renovada por já não atender mais às demandas da psique, no caso simbolizada pela imagem do velho rei.

Tambem é interessante notar que Cronos não é o sucessor definitivo, pois está entre Úranos e Zeus, o que nos faz associá-lo ainda mais à esse momento de transição, onde o transgressor ainda possui certa fragilidade.

Cronos não consegue se diferenciar totalmente, acabando por repetir as ações do pai e a ter assim o mesmo destino. Ainda se pode especular acerca dos estados depressivos em relação à figura de Cronos como uma luta a ser travada com esse Pai autoritário e devorador que impede a vida.

E de fato, Nelson Rodrigues, através de sua obra vai travar uma luta contra o pai coletivo sombrio, dogmático e repressor de sua época, que através de um moralismo hipócrita tenta esconder uma sexualidade cada vez mais deixada à sombra.

A sexualidade perversa, que não é compatível com a atitude da cosciência pode ser comparada à prisão de Cronos no útero materno, enquanto aspecto da personalidade totalmente submerso no inconsciente e suas bases instintivas.

Segundo sua biografia, Nelson teria presenciado o assassinato do irmão, episódio extremamente traumático em sua vida.

O fato teria ocorrido quando este tinha 17 anos na redação de jornal do seu pai onde Nelson trabalhava. A causa da morte seria uma matéria que havia saído no dia anterior revelando o adultério por parte da esposa de um casal de alta sociedade.

Eis que então, essa senhora vai até o jornal com o intuito de se vingar do pai de Nelson e não o encontrando, dispara um tiro contra o irmão.

Dois meses mais tarde, o pai morre profundamente deprimido pelo assassinato do filho em seu lugar, de derrame cerebral.

E nesse drama novelesco vemos novamente a questão da hipocrisia social que parece impulsionar o autor no seu trabalho de despir seus personagens até de suas personas até as raízes sombrias e arquetípicas.

Mas, o conflito com o pai coletivo moralista é também interno, pois, enquanto homem de sua época, Nelson era uma personalidade marcada por grandes contradições, um conservador que ao mesmo tempo proclamava a liberdade, o que novamente nos remete à imagem de Cronos.

“Sou um homem que cultiva velhos sentimentos de culpa. Lembro-me de coisas que fiz aos sete, oito anos. Não tenho ilusões. O canalha é uma dimensão que existe em mim ou em qualquer um. Eis que, nas minhas insônias, me pergunto: -‘O que é que eu fiz?’.” (Castro, org., 1997:48).

Os vários relacionamentos extra-conjugais mantidos ao longo da vida paralelos à um casamento indissolúvel com uma mulher bastante idealizada revela um drama comum do homem cristão que dividido, não consegue integrar os aspectos telúricos e espirituais de sua anima.

Os aspectos telúricos, ligados ao corpo, aparecem contaminados pela sombra, o que se revela nos componentes histéricos presentes em quase todos os personagens femininos de Nelson.

A imagem da mulher ainda bastante presa à imagem materna gera uma cisão em que pureza e sexualidade se antagonizam.

Em Álbum de Família o personagem Guilherme, um típico Puer Aeternus, referindo-se a mãe, diz que esta não poderia tomar conta da sua irmã pois “é uma mulher casada, conhece o amor – não é pura.” A irmã, no caso aparece como um duplo virginal da mãe.

“A contradição só aparece quando começa o desenvolvimento pessoal da psique e quando a razão descobre a natureza irreconciliável dos opostos. A consequência dessa descoberta é o conflito da repressão. Queremos ser bons e portanto devemos reprimir o mal, e com isto, o paraíso da psique coletiva chega ao fim. A repressão da psique coletiva foi uma condição necessária ao desenvolvimento da personalidade.” (Jung, 1996:24).

Nas palavras de Nelson:
“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.” (Castro, org., 1997:48).

Porém, a repressão dos aspectos telúricos do feminino pode ter um efeito sombrio contaminador sobre a sexualidade e também a matéria.

O mundo material torna-se ameaçador o que se acentua num tipo intuitivo como se supõe ter sido Nelson Rodrigues:

“O mundo é a casa errada do homem. Um simples resfriado que a gente tem, um golpe de ar, provam que o mundo é um péssimo anfitrião. O mundo não quer nada com o homem, daí as chuvas, o calor, as enchentes e toda sorte de problemas que o homem encontra para a sua acomodação, que, aliás, nunca se verificou. O homem deveria ter nascido no Paraíso.””(id. Ibid.:115)

Rui Castro que escreveu uma biografia sobre o autor relata algumas manifestações do insconsciente em Nelson: “…seus apelos à sensibilidade ficaram tão agudos que começou a enxergar miragens.

Em ‘O Elogio do Silêncio’, de 23 de fevereiro, Nelson viu ‘flores que se transformam em lindos seios de mulher, seios que acabam como botões de rosa’.

Em ‘A felicidade’, de 8 de março, comparou a lua a ‘uma prostituta velha que ainda se julga apetecível para rapazes que zombam dela’.

E em ‘Palavras ao mar’, de 22 de março, descreveu ondas que ‘depois de altanarem num arremesso formidável, caem ruidosamente no torvelinho branco de espumas, parecendo um bando de mulheres se contorcendo em convulsões de amor’.” (1992: 65)

A estreita relação com o inconsciente conduziu o autor para além da dimensão pessoal e por tocar em questões coletivas seu teatro chocava, incomodava, gerava polêmica.

É no seu trabalho como dramaturgo que Nelson Rodrigues vai transcender a oposição e conflito.

Através de seu dom hermeneutico de escritor, que lhe permite comunicar o que se passa nos subterrâneos da psique, ele consegue unir profano e sagrado. “Mais importante são os ovários da alma. Os verdadeiros órgãos sexuais estão na alma!” (Castro, org., 1997:12)

Por vários aspectos, podemos fazer um paralelo entre à personalidade e obra de Nelson e a imagem do deus grego Dioniso. Nesse sentido vale a pena ressaltar o sentimento de aversão e estranhesa que suas peças sucitavam.

A reação negativa que sua obra despertava nos remete à perseguição de Dioniso pela rainha dos deuses, Hera:

“Através de um fragmento de Plutarco, concernente às antigas festas beócias das ‘Dédalas’, em honra de Hera, ficamos sabendo que, em Atenas, e possivelmente na Beócia, se evitava cuidadosamente todo e qualquer contato entre os objetos que pertenciam ao culto de Hera e aqueles pertencentes ao de Dioniso…

"A verdadeira muralha que separava os dois cultos era certamente consequência das características muito diferentes desse par antitético: de um lado, Hera, a teléia, a saber, a protetora dos casamentos, de outro, Dioniso, o deus das orgias, dos ‘desregramentos’.” (Brandão, 1996:121)

No entanto, sua arte representa uma reação criativa contra o que seriam as forças destrutivas de Hera, causadora do despedaçamento de Dioniso Zagreu. Do mesmo modo como Hermes salva Dioniso é através da sua arte que Nelson vai possibilitar essa convivência dos deuses rivais.

Em última análise, pode-se dizer que Nelson possuia uma sabedoria sobre os pântanos da alma humana o que revela um contato com o que Moore e Gillete chamam de arquétipo do Mago.

“O arquétipo do Mago num homem é o seu ‘detector de mentiras’, ele percebe a falsidade e exercita o discernimento. Ele descobre a maldade onde ela estiver oculta por trás da bondade, como tantas vezes acontece.” (Moore e Gillette, 1993:98).

A obra

“Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos, em suma, de uma rajada de monstros.” (Castro,org.,1997 :161)

As peças de Nelson Rodrigues podem ser divididas em três grupo temáticos: peças psicológicas, míticas e tragédias cariocas.

Suas peças sempre girariam em torno dos mesmos mitologemas, caracterizando também seu estilo inconfundível.

Ocorre que em certo momento da obra de Nelson há um aprofundamento até raízes bem primitivas do homem.

Esse caminho que Nelson percorre com sua dramaturgia assume a forma espiralar onde o autor vai percorrendo os mesmo temas com diferentes personagens que vão se tornando cada vez mais despidos de suas personas, instintivos e semelhantes à personagens míticos.

Tal movimento se assemelha ao termo alquímico utilizado por Jung, circumambulatio, o andar em torno de um símbolo.

Assim analisa Sábato Magaldi, crítico e admirador da obra rodriguiana:

“A evolução dramatúgica de Nelson levava inevitavelmente a esse mergulho na inconsciência primitiva do homem.
A Mulher Sem Pecado já estava carregada de motivos psicológicos, prestes a romper as barreiras da censura interior. Vestido de Noiva rasgou o véu da consciência, para dar livre curso às fantasias do subconsciente. Na exploração das verdades profundas do indivíduo, o passo seguinte se dirigiria para o estabelecimento dos arquétipos, dos mitos que se encontram nas origens das nossas forças ‘vitais’. A menos que traísse sua vocação autêntica, Nelson teria mesmo que escrever Álbum de Família. ” (Rodrigues,1981:14)

Porém, a exposição que lhe traria este percurso constituia em si um ato heróico. Foram justamente suas peças míticas que lhe renderam o maior número de críticas.

“Álbum de Família, a tragédia que se seguiu a Vestido de Noiva, inicia meu ciclo do ‘teatro desagradável’.
Quando escrevi a última linha, percebi uma outra verdade. As peças se dividem em ‘interessantes’ e ‘vitais’… todas as peças vitais, pertencem ao ‘teatro desagradável’. A partir de Álbum de Família, tornei-me um abominável autor. Por toda parte, só encontrava ex-admiradores. Para a crítica, autor e obra estavam justapostos e eram ambos ‘casos de polícia’.” (id. Ibid.:13,14)

O teatro desagradável nos remete aos primórdios da tragédia grega bem como ao seu patrono, Dioniso.

Segundo Junito Brandão, “a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do drama satírico”. (1996: 128). Brandão explica que o ditirambo era uma canção coral que tomava parte nos ritos sacrificiais dionisíacos e que foi se tornando com o tempo um gênero literário.

Os coros ditirambicos se apresentavam nas Dionísias Urbanas, festas que celebravam a primavera e que terminavam com a apresentação de três tragédias e um drama satírico. Tudo isso se passando em torno do altar de Dioniso.

Sendo assim, compreender o teatro dentro do contexto religioso de que fazia parte ajuda-nos a perceber o significado mais profundo e a função social que este adqüiria, no sentido de encarnar forças inconscientes, arquetípicas, ameaçadoras, possibilitando assim um certo controle e purificação.

Este era o teatro que Nelson Rodrigues buscava e que muito se distancia da idéia atual de um mero entretenimento. O teatro, como tal, adqüiria um papel terapêutico.

Segundo Jung, “todo complexo autônomo ou relativamente autônomo tem a particularidade de apresentar-se como personalidade, ou melhor, personificado.” (1985: 392).

Desse modo, o teatro aparece como uma forma lúdica de interagir com essas forças inconscientes, personificando-as arbitrariamente, sem que se corra o risco de uma invasão.

“La violencia es una violencia contenida dentro de los limites del juego, del acto ludico y, por eso, puede ser purificante.” (Maldonado, 1974:139).

O movimento de descida às profundezas do inconsciente de onde o espectador emergiria transformado assemelha-se à catarse, ou seja, a descida ao reino dos mortos, seguida de uma anábase, tal como ocorre no mito de Dioniso.

Outro aspecto de Dioniso que se relaciona a obra de Nelson Rodrigues é o entusiasmo. “O entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, co-participando da divindade.” (Brandão, 1996:136)

E de fato, todos os personagens do autor, principalmente os femininos, em determinado momento sucumbem, como que possuidos por uma força estranha, uma outra voz que fala por eles, numa espécie de transe histérico.

Enquanto deus da fertilidade Dioniso está relacionado às orgias. Aqueles que não honravam ao deus no mito eram castigados pela loucura, por uma espécie de frenesi que os conduzia a um final trágico. Porém, a possessão pelo deus através do entusiasmo também fazia parte de seus cultos.

Portanto, de acordo com o mito é forçoso o relacionamento com Dioniso, ele é um deus que nos possui e se não é aceito, reconhecido em seu poder de divindade sua imposição se dá de forma violenta e devastadora.

O deus tinha que ser honrado como tal e na Grécia Antiga tal homenagem se prestava nas Antestérias, a festa sagrada do vinho, onde os participantes se embriagavam e dançavam até o semi-desfalecimento, segundo nos conta J. Brandão.

“Evidentemente, essa superação da condição humana e essa liberdade, adqüirida através do ékstasis, constituiam, ipso facto, uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social, o que explica, consoante Mircea Eliade, a adesão maciça das mulheres às festas de Dioniso. E, em Atenas, as coisas eram claras: Nada mais repremido e humilhado do que a mulher.” (Brandão, 1996:136).

Porém, se Dioniso já é um deus incompatível à ordem, num mundo cada vez mais orientado pelo Logos e suas tentativas de organização e controle, tudo que manifeste uma esfera mais animal, corporal, instintiva, por assim dizer, definitivamente perde o seu lugar sagrado.

Há uma analogia na descrição do que seria uma possessão pelo deus com as patologias histéricas e os transtornos maneiformes. A cisão Apolo-Dioniso revela a cisão mente-corpo.

A reconstituição deste espaço dionisíaco, pelo teatro, talvez seja um grande valor da obra de Nelson Rodrigues e possivelmente uma das razões pelas quais suas peças continuem a exercer fascínio, pois aquilo que está na sombra causa aversão mas também curiosidade, é sedutor. O teatro é um lugar social no qual Dioniso pode transitar.

E Dioniso é também deus da fertilidade e como tal garante a renovação da vida.

As peças míticas se encerram com Senhora dos Afogados, peça inspirada na Oréstia, a trilogia de Ésquilo. É curioso notar a simbologia do mar na trama: “Há também um personagem invisível: O mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond, sobretudo as mulheres.” (Rodrigues,1981: 259).

“Um mito da cidade tebana de Tanagra, conservado por Pausânias, atesta que as mulheres tinham por hábito purificar-se no mar, antes de se entregarem às orgias báquicas”. (Brandão,1996: 116).

De acordo com J. Brandão as próprias bacantes eram muitas vezes chamadas de “mulheres do mar”o que remete à outra visão do Nelson adolescente em que as ondas se transfiguravam em mulheres se contorcendo nas convulsões do amor. As mulheres e a histeria são símbolo de uma situação coletiva.

Álbum de Família

“Ai do que vive sem horror. Pois é o espanto que nos salva. Aquele que se horroriza pode esperar ainda a ressurreição”

As tragédias, a partir de Álbum de Família, trazem um traço de atemporalidade e seus personagens atingem uma dimensão sobre-humana, agindo como marionetes de seus desejos.

A trama da peça se desenrola numa fazenda em Colgonhas, como num lugar perdido no tempo e no espaço.

A única marca de tempo nos é passada através de um speaker, representante do que seria a opinião pública e de uma consciência meio débil, que narrando algumas fotos, tiradas ao longo da história, faz comentários de senso comum completamente alheios aos verdadeiros fatos.
O speaker é a única relação com o mundo concreto e civilizado.

“Nelson propôs em Álbum de Família um exercício de autenticidade absoluta. As personagens decidiram abolir a censura – engodo da conveniência que lhes permite o convívio -, para vomitar a sua natureza profunda, avessa a quaisquer padrões.” (Rodrigues,1981:15).

Desse modo somos transportados para um mundo sem lei, matriarcal, como que anterior à civilização, aonde apenas existe o desejo.

A peça se inicia com os gemidos de uma menina parindo que vai ser escutado ao longo de toda a trama. Logo descobrimos que a menina está grávida de Jonas que, apesar de casado com D. Senhorinha, manda a cunhada trazer-lhe meninas novinhas, virgens, para com ele se deitarem.

Todas as meninas engravidam e acabam morrendo na hora do parto pois “não têm quadris”.
Essa imagem forma um pano de fundo sacrificial sobre o qual a história da família vai se desenrolar.

A figura de Jonas se assemelha a de Jesus Cristo. Ele se apresenta como o pai fecundador. Jonas teve relações sexuais com todas as mulheres da casa, exceto com a filha por quem é perdidamente apaixonado e a quem mantém num internato, protegida como uma virgem imaculada.

Vemos aqui Jonas representar o que se poderia ser chamado de imagem do pai fecundador, o princípio masculino celeste que vai fertilizar a terra. No entanto, a terra, simbolizada pelas virgens ainda não é capaz de gerar, o que vem caracterizar esse masculino abusador, descomedido, em hybris.

Em nenhum momento há qualquer interdito em relação ao ato de Jonas, de modo que as virgens vão morrendo desamparadas sem que nada intervenha à seu favor, o que situa Jonas numa dimensão sobre-humana.

No caso da peça as virgens são colocadas como meninas do campo, meio selvagens, o que as liga ainda mais simbólicamente à terra, há uma terra virgem a ser iniciada pelo espírito do Logos, porém a cena é a de horror pela destruição que esse masculino causa.

Outra imagem paterna é a de um avô que surge trazendo sua neta para Jonas. Esse avô é descrito como um velho de cajado, barbas bíblicas e um pé com elefantíase. Essa figura nos remete a imagem de Édipo, em sua etimologia Oidípus, “o de pés inchados”.

A imagem de Édipo pode nos falar de um desejo regressivo que atrapalha o indivíduo a caminhar para frente. Somos então levados para um universo primitivo.

O símbolo do incesto muito presente na peça assim como na tragédia de Édipo poderia refletir esse desejo regressivo de retorno às origens, à um estado urobórico, de fusão a mãe e com o inconsciente, aonde não existem limites nem leis.

Mais do que o desejo sexual pela mãe em si aqui se trataria de um movimento regressivo da libido.
Na peça esse desejo é expresso pela fala de Edmundo, o filho apaixonado pela mãe D. Senhorinha: “Eu acho que o homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá, toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega, não sei”.

D. Senhorinha vai representar então essa Grande Mãe sedutora cujos filhos são apaixonados. O filho mais novo Nonô tendo realmente se fusionado com a mãe e realizado o desejo incestuoso, regrediu à um estado animal e ao longo da peça fica uivando nú ao redor da casa.

D. Senhorinha é apresentada como essa mãe extremamente sedutora, de uma beleza quase divina que ninguém pode resistir, “até a própria mãe gostava de admirar-lhe o corpo enquanto a assistia se banhar”. Segundo a fala de Tia Rute, sua irmã feia: “... Ser bonita assim é até imoralidade porque nenhum homem se aproxima de você sem pensar em voçê PARA OUTRAS COISAS”.

E D. Senhorinha é a imagem da mãe que corresponde ao amor dos filhos e só consegue se sentir atraída por eles. Essa imagem da deusa Afrodite, uma Grande Mãe que se atrai por adolescentes que sempre terminam tragicamente, metamorfoseados em flor ou morrendo precocemente.

Afrodite, é uma imagem do poder atrativo do inconsciente mas também está relacionada ao desejo perverso com tudo o que tem de despedaçador enquanto irreconciliável com a consciência. Um dos castigos infringidos por Afrodite aos que ofendiam a deusa era justamente o desejo incestuoso, tal como ocorre com Mirra e Fedra.

D. Senhorinha é uma imagem da Grande Mãe devoradora que concebe a vida mas também a destrói por não aceitar que estes se separem dela: “Não botei meus filhos no mundo para dar a outra mulher!”

Assim como Afrodite quando descobre a paixão de Eros por Psiqué “Porventura desejas impor-me uma rival como Nora? Julgas realmente devasso, asqueroso, sedutor intolerável, que somente tu podes ter filho e que eu, por causa da minha idade, não poderia conceber?” (Brandão, 1996:215).

Desse modo em Álbum de Família Nelson propõe um mergulho nesse mundo matriarcal, instintivo, caótico aonde a razão não pode penetrar.

A peça termina com a morte de todos e com a fuga da mãe e seu filho amado para viverem juntos. Ao fundo se ouve uma marcha fúnebre.

A morte traz a questão sacrificial, uma possivel redenção, transformação do desejo e um princípio de consciência.

Conclusão

“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez” (Castro, org.,1997: 152).

Através da análise da vida e obra de Nelson Rodrigues encontramos a figura do deus grego Dioniso.

A sexualidade na época de Nelson Rodrigues se encontrava dissociada e reprimida por uma moral e princípios cristãos que refletiam uma cisão mente-corpo.

Essa moral repressora, causa das grandes histerias do século XIX, sobrevive ainda na mentalidade do brasileiro da primeira metade do séc.XX e remete à um drama arcaico que se relaciona à imagem do deus grego Dioniso, o de um lado instintivo que não pode ser conciliado com a cultura.

No entanto, através da interação criativa com o deus proposta pelo teatro se encontra a possibilidade de uma renovação da vida a medida que Dioniso é também um deus da fertilidade. No caso, a fertilização da consciência pelo inconsciente, por tudo aquilo que não se tem contato devido às interdições ou falta de referência externa indo repousar na sombra.

A concretização através dos personagens desse lado primitivo que o homem civilizado sequer pode reconhecer como pertencente a si adquire uma função purificatória.

No encontro com o sombrio, grotesco e desagradável existem possibilidades de vida e criação pois a moralidade rígida atende mais à um ideal de perfeição do que de totalidade.

A totalidade de anjo pornográfico, capaz de interagir com diferentes aspectos do ser.

Referências bibliográficas
BOECHAT, W., Org. (1995). Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo. Petrópolis:Vozes.
BOECHAT, W. Psicopatologia das Funções Fundamentais .
BRANDÃO, J. de S. (1996). Mitologia Grega, vol. I, II e III. Petrópolis: Vozes.
CASTRO, R. (1992). O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras.
CASTRO, R, seleção e org. (1997). Flor de Obsessão: As 100 melhores frases de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras.
JACOBI, J. (1990). Complexo, Arquétipo e Símbolo . São Paulo: Cultrix.
JUNG,C.G. (1991). Tipos Psicológicos. Obras Completas, vol.VI. Petrópolis:Vozes.
JUNG,C.G. (1996). O Eu e o Inconsciente. Obras Completas, vol.VII/2. Petrópolis:Vozes.
JUNG,C.G. (1984). Psicologia e Religião. Obras Completas, vol.X/1. Petrópolis:Vozes.
MALDONADO, L. (1974). La Violencia de lo sagrado, crueldad versus oblatividad o el ritual del sacrifício. Madrid: Salamanca.
MOORE, R. e GILLETTE, D. (1993). Rei, Guerreiro, Mago, Amante: A redescoberta dos Arquétipos do Masculino. Rio de Janeiro: Campus.
RODRIGUES, N. (1981). Teatro Completo de Nelson Rodrigues, vol.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Peças psicológicas

A mulher sem pecado
Vestido de noiva
Valsa n° 6 Viúva, porém honesta
Anti-Nelson Rodrigues

Peças míticas

Álbum de família
Anjo negro
Dorotéia
Senhora dos afogados

Tragédias cariocas

A falecida
Perdoa-ma por me traíres
Os sete gatinhos
Boca de ouro
O beijo no asfalto
Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária
Toda nudez será castigada
A serpente

Como Surgiu o Teatro Épico


Em 1924 Brecht mudou-se para Berlim, onde foi assistente dos diretores Max Reinhardt e Erwin Piscator. Em 1928 a encenação da Ópera dos Três Vinténs alçou Brecht à fama.

A peça é, talvez, a mais conhecida das suas obras e já mostra a crítica e as teorias teatrais que Brecht veio a desenvolver efetivamente mais tarde.

Em 1929 Brecht passou a elaborar sua teoria do “teatro épico”. Em 1933, com a ascensão do nazismo, exilou-se sucessivamente na França, Dinamarca, Finlândia e Estados Unidos (onde permaneceu durante seis anos, de 1941 a 47).

Acusado de atividades antiamericanas (e interrogado por McCarthy), foi forçado a voltar para a Alemanha, fixando-se em Berlim Oriental.

Lá criou sua própria companhia, o Berliner Ensemble, que produziu suas últimas peças e foi um dos teatros mais ativos da Alemanha na segunda metade do séc. XX.

Com a teoria que propunha uma representação épica do teatro, Brecht pretendeu opor-se ao “teatro dramático”, que – segundo Brecht – conduz o espectador a uma ilusão da realidade, reduzindo-lhe a percepção crítica.

O referido “efeito de estranhamento” tinha o objetivo de estimular o senso crítico, tornando claros os artifícios da representação cênica e destacando conseqüentemente o valor revolucionário do texto.

Brecht foi um escritor multifacetado, mas sempre manteve uma unidade básica, através da qual permanece atual ainda hoje. Sua obra abarca o teatro, a poesia, o romance, o ensaio, a crítica teatral e o aforismo.

O autor inovou ao utilizar temas do mundo americano e da nova indústria de produção serial, foi audacioso no ritmo – e na secura – de sua lírica e inovou com as Kabarettchansone da época da inflação galopante da República de Weimar e com os songs americanos tão característicos a partir d’A Ópera dos Três Vnténs.

A Ópera dos Três Vinténs é, aliás, um manifesto da perenidade.

Bibliografia de peças do teatro alemão traduzidas para o português disponíveis nos Institutos Goethe do Brasil e de Portugal.
http://www.goethe.de/Ins/br/sap/prj/bre/ldb/ptindex.htm

Poesia de Brecht

Louvação da Desmemória
Boa é a desmemória! Sem ela, como iria deixar o filho a mãe que lhe deu de mamar, que lhe emprestou força aos membros e que o retinha para o experimentar.
Ou como iria o aluno deixar o mestre que lhe emprestou o saber? Com o saber emprestado, cumpre ao discípulo pôr-se a caminho.
Na casa velha os novos moradores entram; se lá estivessem ainda os que a construíram, seria a casa pequena demais.
O forno esquenta, e do oleiro ninguém se lembra mais. O lavrador não reconhece o pão depois de pronto.
Como levantar-se de novo o homem de manhã, sem o esquecimento que apaga os rastros da noite? Como iria, quem foi ao chão seis vezes, levantar-se pela sétima vez para amanhar o pedregoso chão, para subir ao perigoso céu?
É a fraqueza da memória que dá força à criatura humana. (Poemas e Canções.Trad. Geir Campos. Civilização Brasileira, 1996)

Fala ao amado que vai a guerra
Meu querido, meu querido, se agora vais para a guerra,
vais combater o inimigo, não vás na frente da guerra nem fiques atrás da guerra: o fogo é rubro na frente, atrás é rubra a fumaça. Fica no meio da guerra, perto do porta-estandarte. São mortos sempre os primeiros, os últimos são também; os do meio é que para casa vêm.
(Poemas e Canções. Trad. Geir Campos, Civilização Brasileira, 1996)
...
Soube que vocês nada querem aprender
Então devo concluir que são milionários.
Seu futuro está garantido — à sua frente
Iluminado.
Seus pais
Cuidaram para que seus pés
Não topassem com nenhuma pedra.
Neste caso
Você nada precisa aprender.
Assim como é
Pode ficar.
Havendo ainda dificuldades, pois os tempos
Como ouvi dizer, são incertos
Vocês tem seus líderes, que lhe dizem exatamente
O que tem a fazer, para que vocês estejam bem.
Eles leram aqueles que sabem
As verdades válidas para todos os tempos
E as receitas que sempre funcionam.
Onde há tantos a seu favor
Você não precisa levantar um dedo.
Sem dúvida, se fosse diferente
Você teria que aprender.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Professor, aprende!
Não digas tantas vezes que estás com a razão!
Deixa que o reconheçam os alunos!
Não forces com demasia a verdade: é que ela não resiste…
Escuta, quando falas!
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Pergunta
Como há de ser instituída a verdadeira ordem sem o saber das massas?
Sem aviso, não se pode o caminho para tantos descobrir.
Vós, grandes mestres, deveis escutar bem o que os pequenos dizem!
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Realizar algo de útil
Quando li que queimavam as obras dos que procuravam escrever a verdade
Mas ao tagarela George, o de fala bonita, convidaram
Para abrir sua Academia, desejei mais vivamente
Que chegue enfim o tempo em que o povo solicite a um homem desses
Que num dos locais de construção dos subúrbios
Empurre publicamente um carrinho de mão com cimento, para que Ao menos uma vez um deles realize algo de útil, com o que Poderia então retirar-se para sempre
Para cobrir o papel de letras
Às custas do
Rico povo trabalhador.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Quando me fizeram deixar o país
Lia-se nos jornais do pintor
Que isto acontecia porque num poema
Eu havia zombado dos soldados da Primeira Guerra. Realmente, no penúltimo ano da guerra
Quando aquele regime, para adiar sua derrota
Já enviava os mutilados novamente para o fogo
Ao lado dos velhos e meninos de dezessete anos
Descrevi em um poema
Como um soldado morto era desenterrado e
Sob o júbilo de todos os enganadores do povo
Sanguessugas e opressores
Conduzido de volta ao campo de batalha. Agora que preparam uma nova
Grande Guerra
Resolvidos a superar inclusive as barbaridades da última
Eles matam ou expulsam gente como eu
Que denuncia
Seus golpes.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Notícia sobre um náufrago
Quando o náufrago pisou em nossa ilha
Chegou como alguém que alcançou seu destino. Quase acredito que ao nos ver
A nós que havíamos corrido a ajudá-lo
Ele imediatamente sentiu compaixão. Já desde o início
Ocupou-se apenas de nossas coisas
Com a experiência do seu naufrágio
Ensinou-nos a velejar. Mesmo coragem
Ele nos instilou. Das águas tempestuosas
Falava com grande respeito, talvez
Por terem vencido um homem como ele. Sem dúvida
Haviam assim revelados muitos de seus truques. Este conhecimento faria de nós, alunos dele
Homens melhores. Sentindo falta de certas comidas
Ele melhorou nossa cozinha. Embora visivelmente insatisfeito consigo
Jamais se deixou ficar satisfeito com o estado de coisas
Em torno dele e de nós. Nunca, porém
Durante todo o tempo em que passou conosco
Ouvimo-lo queixar-se de outro alguém que não ele mesmo. Morreu de uma velha ferida. Já no leito
Experimentou um novo nó para nossas redes. Assim
Morreu aprendendo.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Sobre a decadência do amor
Suas mães deram à luz com dor, mas suas mulheres
Concebem com dor.
O ato do amor
Não mais vingará . O ajuntamento ainda ocorre, mas
O abraço é um abraço de lutadores. As mulheres
Ergueram o braço em defesa, enquanto
São cingidas por seus possuidores.
A rústica ordenhadora, conhecida
Por sua capacidade de no abraço
Sentir prazer, olha com desprezo
Suas infelizes irmãs vestidas em peles
Que recebem por cada meneio do traseiro bem-cuidado
A fonte paciente
Que deu de beber a tantas gerações
Vê com horror como a última
Lhe bebe a porção com expressão amarga.
Todo animal sabe fazê-lo. Entre esses
É tido como uma arte.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

A queima de livros
Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder. Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me Como um mentiroso! Eu lhes ordeno: Queimem-me!
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Mau tempo para a poesia
Sim, eu sei: só o homem feliz
É querido. Sua voz
É ouvida com prazer. Seu rosto é belo.
A árvore aleijada no quintal
Indica o solo pobre, mas
Os passantes a maltratam por ser um aleijão
E estão certos.
Os barcos verdes e as velas alegres da baía
Eu não enxergo. De tudo
Vejo apenas a rede partida dos pescadores. Por que falo apenas Da camponesa de quarenta anos que anda curvada?
Os seios das meninas
São quentes como sempre.
Em minha canção uma rima
Me pareceria quase uma insolência.
Em mim lutam
O entusiasmo pela macieira que floresce
E o horror pelos discursos do pintor. Mas apenas o segundo
Me conduz à escrivaninha.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Sobre a seriedade na arte
A seriedade do homem que dá forma às jóias de prata
É igualmente benvinda à arte do teatro, e benvinda
É a seriedade das pessoas que trancadas
Discutem o texto de um panfleto. Mas a seriedade
Do médico inclinado sobre o doente já não é adequada
À arte teatral, e inteiramente imprópria é
A seriedade do padre, seja suave ou inquieta.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

As novas eras
As novas eras não começam de uma vez
Meu avô já vivia no novo tempo
Meu neto viverá talvez ainda no velho,
A nova carne é comida com os velhos garfos.
Os carros automotores não havia
Nem os tanques
Os aeroplanos sobre nossos tetos não havia
Nem os bombardeiros.
Das novas antenas vêm as velhas tolices. A sabedoria é transmitida de boca em boca.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Sobre a atitude crítica
A atitude crítica
É para muitos não muito frutífera
Isto porque com sua crítica
Nada conseguem do Estado. Mas o que neste caso é atitude infrutífera
É apenas uma atitude fraca. Pela crítica armada
Estados podem ser esmagados.
A canalização de um rio
O enxerto de uma árvore
A educação de uma pessoa
A transformação de um Estado
Estes são exemplos de crítica frutífera. E são também
Exemplos de arte.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Regresso
A cidade natal, como a encontrarei ainda? Seguindo os enxames de bombardeiros
Volto para casa. Mas onde está ela? Lá onde sobem
Imensos montes de fumaça. Aquilo no meio do fogo
É ela.
A cidade natal, como me receberá? À minha frente vão os bombardeiros. Enxames mortais
Vos anunciam meu regresso. Incêndios
Precedem o filho.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)

Facilidade
Vejam só a facilidade
Com que o rio poderoso
Rompe as barragens! O terremoto
Com mão indolente
Sacode o chão. O fogo terrível
Toma com graça
A cidade de mil casas
E a devora com gosto: Um comilão treinado.
(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986)
...
A Cruz de Giz
Eu sou uma criada. Eu tive um romance
Com um homem que era da SA. Um dia, antes de ir
Ele me mostrou, sorrindo, como fazem
Para pegar os insatisfeitos. Com um giz tirado do bolso do casaco Ele fez uma pequena cruz na palma da mão. Ele contou que assim, e vestido à paisana anda pelas repartições do trabalho
Onde os empregados fazem fila e xingam
E xinga junto com eles, e fazendo isso
Em sinal de aprovação e solidariedade
Dá um tapinha nas costas do homem que xinga
E este, marcado com a cruz branca ë apanhado pela SA. Nós rimos com isso. Andei com ele um ano, então descobri
Que ele havia retirado dinheiro
Da minha caderneta de poupança. Havia dito que a guardaria para mim
Pois os tempos eram incertos. Quando lhe tomei satisfações, ele jurou
Que suas intenções eram honestas. Dizendo isso
Pôs a mão em meu ombro para me acalmar. Eu corri, aterrorizada. Em casa
Olhei minhas costas no espelho, para ver
Se não havia uma cruz branca.
...
A Exceção e a Regra
Estranhem o que não for estranho. Tomem por inexplicável o habitual. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.
...
A Fumaça
A pequena casa entre árvores no lago. Do telhado sobe fumaça
Sem ela
Quão tristes seriam
Casa, árvores e lago.
...

A Máscara Do Mal
Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa
Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado. Compreensivo observo
As veias dilatadas da fronte, indicando
Como é cansativo ser mal
...
A Minha Mãe
Quando ela acabou, foi colocada na terra
Flores nascem, borboletas esvoejam por cima...
Ela, leve, não fez pressão sobre a terra
Quanta dor foi preciso para que ficasse tão leve!
...
Acredite Apenas
Acredite apenas no que seus olhos vêem e seus ouvidos
Ouvem!
Também não acredite no que seus olhos vêem e seus
Ouvidos ouvem! Saiba também que não crer algo significa algo crer!
...
A Troca da Roda
Estou sentado á beira da estrada, o condutor muda a roda. Não me agrada o lugar de onde venho. Não me agrada o lugar para onde vou. Por que olho a troca da roda com impaciência?
...
As Boas Ações
Esmagar sempre o próximo não acaba por cansar? Invejar provoca um esforço que incha as veias da fronte. A mão que se estende naturalmente dá e recebe com a mesma facilidade. Mas a mão que agarra com avidez rapidamente endurece. Ah! que delicioso é dar! Ser generoso que bela tentação! Uma boa palavra brota suavemente como um suspiro de felicidade!
...
Aos que virão depois de nós
I
Eu vivo em tempos sombrios. Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez, uma testa sem rugas é sinal de indiferença. Aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime. Pois significa silenciar sobre tanta injustiça? Aquele que cruza tranqüilamente a rua já está então inacessível aos amigos que se encontram necessitados?
É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver. Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado. (Se a minha sorte me deixa estou perdido!)
Dizem-me: come e bebe! Fica feliz por teres o que tens! Mas como é que posso comer e beber, se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome? Se o copo de água que eu bebo, faz falta a quem tem sede? Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria: Manter-se afastado dos problemas do mundo e sem medo passar o tempo que se tem para viver na terra; Seguir seu caminho sem violência, pagar o mal com o bem, não satisfazer os desejos, mas esquecê-los. Sabedoria é isso! Mas eu não consigo agir assim. É verdade, eu vivo em tempos sombrios!
II
Eu vim para a cidade no tempo da desordem, quando a fome reinava. Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta e me revoltei ao lado deles. Assim se passou o tempo que me foi dado viver sobre a terra. Eu comi o meu pão no meio das batalhas, deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção e não tive paciência com a natureza. Assim se passou o tempo que me foi dado viver sobre a terra.
III
Vocês, que vão emergir das ondas em que nós perecemos, pensem, quando falarem das nossas fraquezas, nos tempos sombrios de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes, mudando mais seguidamente de países que de sapatos, desesperados! quando só havia injustiça e não havia revolta.
Nós sabemos: o ódio contra a baixeza também endurece os rostos! A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca! Infelizmente, nós, que queríamos preparar o caminho para a amizade, não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. Mas vocês, quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão.
...
Com Cuidado Examino
Com cuidado examino
Meu plano: ele é
Grande, ele é
Irrealizável.
...
Como Bem Sei
Como bem sei
Os impuros viajam para o inferno
Através do céu inteiro. São levados em carruagens transparentes: Isto embaixo de vocês, lhe dizem
É o céu. Eu sei que lhes dizem isso
Pois imagino
Que justamente entre eles
Há muitos que não o reconheceriam, pois eles
Precisamente
Imaginavam-no mais radiante
...
Da Sedução Dos Anjos
Anjos seduzem-se: nunca ou a matar. Puxa-o só para dentro de casa e mete-lhe a língua na boca e os dedos sem frete
Por baixo da saia até se molhar
Vira-o contra a parede, ergue-lhe a saia
E fode-o. Se gemer, algo crispado
Segura-o bem, fá-lo vir-se em dobrado
Para que do choque no fim te não caia.
Exorta-o a que agite bem o cú
Manda-o tocar-te os guizos atrevido
Diz que ousar na queda lhe é permitido
Desde que entre o céu e a terra flutue –

Mas não o olhes na cara enquanto fodes
E as asas, rapaz, não lhas amarrotes.
Das Elegias
De Buckow
Viesse um vento
Eu poderia alçar vela. Faltasse vela
Faria uma de pano e pau.
...
De Que Serve A Bondade
1 De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?
2 Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor: que a torne supérflua!
Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!
Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.
...
Elogio da Dialética
A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores. No mercado da exploração se diz em voz alta: Agora acaba de começar: E entre os oprimidos muitos dizem: Não se realizará jamais o que queremos! O que ainda vive não diga: jamais! O seguro não é seguro. Como está não ficará. Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais? De quem depende a continuação desse domínio? De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós. Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem! Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã. E o "hoje" nascerá do "jamais".
...
Elogio do Revolucionário
Quando aumenta a repressão, muitos desanimam. Mas a coragem dele aumenta. Organiza sua luta pelo salário, pelo pão e pela conquista do poder. Interroga a propriedade: De onde vens? Pergunta a cada idéia: Serves a quem? Ali onde todos calam, ele fala
E onde reina a opressão e se acusa o destino, ele cita os nomes. À mesa onde ele se senta se senta a insatisfação. À comida sabe mal e a sala se torna estreita. Aonde o vai a revolta e de onde o expulsam persiste a agitação.
...
Epístola Sobre O Suicídio
Matar-se
É coisa banal. Pode-se conversar com a lavadeira sobre isso. Discutir com um amigo os prós e os contras. Um certo pathos, que atrai
Deve ser evitado. Embora isto não precise absolutamente ser um dogma. Mas melhor me parece, porém
Uma pequena mentira como de costume: Você está cheio de trocar a roupa de cama, ou melhor
Ainda: Sua mulher foi infiel (Isto funciona com aqueles que ficam surpresos com essas coisas
E não é muito impressionante.)
De qualquer modo
Não deve parecer
Que a pessoa dava
Importância demais a si mesmo
...
Epitáfio Para Gorki
Aqui jaz
O enviado dos bairros da miséria
O que descreveu os atormentadores do povo
E aqueles que os combateram
O que foi educado nas ruas
O de baixa extração
Que ajudou a abolir o sistema de
Alto a
Baixo
O mestre do povo
Que aprendeu com o povo.
...
Esse Desemprego!
Meus senhores, é mesmo um problema
Esse desemprego! Com satisfação acolhemos
Toda oportunidade
De discutir a questão. Quando queiram os senhores! A todo momento! Pois o desemprego é para o povo
Um enfraquecimento. Para nós é inexplicável
Tanto desemprego. Algo realmente lamentável
Que só traz desassossego. Mas não se deve na verdade
Dizer que é inexplicável
Pois pode ser fatal
Dificilmente nos pode trazer
A confiança das massas
Para nós imprescindível. É preciso que nos deixem valer
Pois seria mais que temível
Permitir ao caos vencer
Num tempo tão pouco esclarecido! Algo assim não se pode conceber
Com esse desemprego! Ou qual a sua opinião? Só nos pode convir Esta opinião: o problema
Assim como veio, deve sumir. Mas a questão é: nosso desemprego Não será solucionado
Enquanto os senhores não
Ficarem desempregados!
...
Eu Sempre Pensei
E eu sempre pensei: as mais simples palavras
Devem bastar. Quando eu disser como e
O coração de cada um ficará dilacerado. Que sucumbirás se não te defenderes
Isso logo verás.
Expulso
Por
Bom
Motivo
Eu cresci como filho
De gente abastada. Meus pais
Me colocaram um colarinho, e me educaram
No hábito de ser servido
E me ensinaram a dar ordens. Mas quando
Já crescido, olhei em torno de mim
Não me agradaram as pessoas da minha classe e me juntei
À gente pequena.
Assim
Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe
Suas artes, e ele
Denuncia-os ao inimigo. Sim, eu conto seus segredos. Fico
Entre o povo e explico
Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois
Estou instruído em seus planos. O latim de seus clérigos corruptos Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,
Então
Ele se revela uma farsa. Tomo
A balança da sua justiça e mostro
Os pesos falsos. E os seus informantes relatam
Que me encontro entre os despossuídos, quando
Tramam a revolta. Eles me advertiram e me tomaram
O que ganhei com meu trabalho. E quando me corrigi
Eles foram me caçar, mas
Em minha casa
Encontraram apenas escritos que expunham
Suas tramas contra o povo. Então
Enviaram uma ordem de prisão
Acusando-me de ter idéias baixas, isto é
As idéias da gente baixa. Aonde vou sou marcado
Aos olhos dos possuidores. Mas os despossuídos
Lêem a ordem de prisão
E me oferecem abrigo. Você, dizem
Foi expulso por bom motivo.
...
Ferro
No sonho esta noite Vi um grande temporal. Ele atingiui os andaimes Curvou a viga feita A de ferro. Mas o que era de madeira Dobrou-se e ficou.
...
Jamais Te Amei Tanto
Jamais te amei tanto, ma soeur
Como ao te deixar naquele pôr do sol
O bosque me engoliu, o bosque azul, ma soeur
Sobre o qual sempre ficavam as estrelas pálidas
No Oeste. Eu ri bem pouco, não ri, ma soeur
Eu que brincava ao encontro do destino negro - Enquanto os rostos atrás de mim lentamente
Iam desaparecendo no anoitecer do bosque azul. Tudo foi belo nessa tarde única, ma soeur
Jamais igual, antes ou depois - É verdade que me ficaram apenas os pássaros
Que à noite sentem fome no negro céu.
..
Lendo Horácio
Mesmo o diluvio
Não durou eternamente. Veio o momento em que
As águas negras baixaram. Sim, mas quão poucos
Sobreviveram!
...
Louvor ao Estudo
Estuda o elementar: para aqueles cuja hora chegou não é nunca demasiado tarde. Estuda o abc. Não basta, mas
Estuda. Não te canses.
Começa. Tens de saber tudo. Estás chamado a ser um dirigente. Freqüente a escola, desamparado! Persegue o saber, morto de frio!
Empunha o livro, faminto! É uma arma! Estás chamado á ser um dirigente. Não temas perguntar, companheiro! Não te deixes convencer! Compreende tudo por ti mesmo.
O que não sabes por ti, não o sabes. Confere a conta. Tens de pagá-la. Aponta com teu dedo a cada coisa e pergunta: "Que é isto? e como é?" Estás chamado a ser um dirigente.
...
Na Guerra Muitas Coisas Crescerão
Ficarão maiores
As propriedades dos que possuem
E a miséria dos que não possuem
As falas do guia*
E o silêncio dos guiados.
*Führer
...
Na Morte De Um Combatente Da Paz
Á memória de Carl von Ossietzky
Aquele que não cedeu
Foi abatido
O que foi abatido
Não cedeu. A boca do que preveniu
Está cheia de terra. A aventura sangrenta
Começa. O túmulo do amigo da paz
É pisoteado por batalhões. Então a luta foi em vão? Quando é abatido o que não lutou só
O inimigo
Ainda não venceu.
...
Nada É Impossível De Mudar
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
...
Não Necessito De Pedra Tumular
Não necessito de pedra tumular, mas
Se necessitarem de uma para mim
Gostaria que nela estivesse: Ele fez sugestões
Nós as aceitamos. Por tal inscrição
Estaríamos todos honrados.
...
No Muro Estava Escrito Com Giz:
Eles querem a guerra. Quem escreveu Já caiu.
...
No Segundo Ano De Minha Fuga
No segundo ano de minha fuga
Li em um jornal, em língua estrangeira
Que eu havia perdido minha cidadania. Não fiquei triste nem alegre Ao ver meu nome entre muitos outros
Bons e maus. A sina dos que fugiam não me pareceu pior
Do que a sina dos que ficavam.
...
O Analfabeto Político
"O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo." Nada é impossível de Mudar "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." Privatizado "Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence."
...
O Maneta No Bosque
Banhado de suor ele se curva
Para pegar o graveto. Os mosquitos
Espanta com um movimento de cabeça. Com os joelhos
Amarra a lenha com dificuldade. Gemendo
Se apruma, ergue a mão
Para ver se chove. A mão erguida
Do temido
Guarda SS.
Antologia Poética de Bertolt Brecht
...
O Nascido Depois
Eu confesso: eu
Não tenho esperança. Os cegos falam de uma saída. Eu Vejo. Após os erros terem sido usados
Como última companhia, à nossa frente
Senta-se o Nada.
...
O Vosso Tanque General,
É Um Carro Forte
Derruba uma floresta esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito - Precisa de um motorista
O vosso bombardeiro, general
É poderoso: Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito - Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil: Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito - Sabe pensar
...
Os Esperançosos
Pelo que esperam? Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis
Lhes devolvam algo? Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los! Por amizade
Os tigres convidarão
A lhes arrancarem os dentes! É por isso que esperam!
...
Os que lutam
"Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis."
...
Os maus e os bons
"Os maus temem tuas garras
Os bons se alegram de tua graça. Algo assim
Gostaria de ouvir
Do meu verso."
...
Para Ler De Manhã E À Noite
Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim. Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.
...
Perguntas De Um Operário Que Lê.
Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilônia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a
Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada
Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sòzinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitòria. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas
...
Poesia do Exílio
Nos tempos sombrios se cantará também? Também se cantará sobre os tempos sombrios.
...
Precisamos De Você.
Aprende - lê nos olhos, lê nos olhos - aprende a ler jornais, aprende: a verdade pensa com tua cabeça.
Faça perguntas sem medo não te convenças sozinho mas vejas com teus olhos. Se não descobriu por si na verdade não descobriu.
Confere tudo ponto por ponto - afinal você faz parte de tudo, também vai no barco, "aí pagar o pato, vai pegar no leme um dia.
Aponte o dedo, pergunta que é isso? Como foi parar aí? Por que? Você faz parte de tudo.
Aprende, não perde nada das discussões, do silêncio. Esteja sempre aprendendo por nós e por você.
Você não será ouvinte diante da discussão, não será cogumelo de sombras e bastidores, não será cenário para nossa ação
...
Privatizado
"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence."
...
Quem Não Sabe De Ajuda
Como pode a voz que vem das casas
Ser a da justiça
Se os pátios estão desabrigados? Como pode não ser um embusteiro aquele que
Ensina os famintos outras coisas
Que não a maneira de abolir a fome? Quem não dá o pão ao faminto
Quer a violência
Quem na canoa não tem
Lugar para os que se afogam
Não tem compaixão. Quem não sabe de ajuda
Que cale.
...
Quem Se Defende
Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão. E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.
...
Refletindo Sobre O Inferno
Refletindo, ouço dizer, sobre o inferno
Meu irmão Shelley achou ser ele um lugar
Mais ou menos semelhante a Londres. Eu
Que não vivo em Londres, mas em Los Angeles
Acho, refletindo sobre o inferno, que ele deve
Assemelhar-se mais ainda a Los Angeles. Também no inferno Existem, não tenho dúvidas, esses jardins luxuriantes
Com as flores grandes como árvores, que naturalmente fenecem Sem demora, se não são molhadas com água muito cara. E mercados de frutas
Com verdadeiros montes de frutos, no entanto
Sem cheiro nem sabor. E intermináveis filas de carros
Mais leves que suas próprias sombras, mais rápidos
Que pensamentos tolos, automóveis reluzentes, nos quais
Gente rosada, vindo de lugar nenhum, vai a nenhum lugar. E casas construídas para pessoas felizes, portanto vazias
Mesmo quando habitadas. Também as casas do inferno não são todas feias
Mas a preocupação de serem lançados na rua
Consome os moradores das mansões não menos que
Os moradores do barracos
...
Se Fôssemos Infinitos
Fôssemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.
...
Sobre A Violência
A corrente impetuosa é chamada de violenta
Mas o leito do rio que a contém
Ninguém chama de violento.
A tempestade que faz dobrar as bétulas
É tida como violenta
E a tempestade que faz dobrar
Os dorsos dos operários na rua?
...
Soube
Soube que
Nas praças dizem de mim que durmo mal
Meus inimigos, dizem, já estão assentando casa
Minhas mulheres põem seus vestidos bons
Em minha ante-sala esperam pessoas
Conhecidas como amigas dos infelizes. Logo
Ouvirão que não como mais
Mas uso novos ternos
Mas o pior é: eu mesmo
Observo que me tornei
Mais duro com as pessoas.
...
Também o Céu
Também o céu às vezes desmorona
E as estrelas caem sobre a terra
Esmagando-a com todos nós. Isto pode ser amanhã.
...
Tempos Sombrios
Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes, pois implica em silenciar sobre tantos horrores.
...
Se os Tubarões Fossem Homens
Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.
Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.
Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões. A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.
Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.
***
Um Homem Pessimista
Um homem pessimista
É tolerante. Ele sabe deixar a fina cortesia desmanchar-se na língua Quando um homem não espanca uma mulher
E o sacrifício de uma mulher que prepara café para seu amado
Com pernas brancas sob a camisa - Isto o comove. Os remorsos de um homem que
Vendeu o amigo
Abalam-no, a ele que conhece a frieza do mundo
E como é sábio
Falar alto e convencido
No meio da noite.
...
Esse Desemprego
Meus senhores, é mesmo um problema
Esse desemprego!
Com satisfação acolhemos
Toda oportunidade
De discutir a questão.
Quando queiram os senhores! A todo momento!
Pois o desemprego é para o povo
Um enfraquecimento.
Para nós é inexplicável
Tanto desemprego.
Algo realmente lamentável
Que só traz desassossego.
Mas não se deve na verdade
Dizer que é inexplicável
Pois pode ser fatal
Dificilmente nos pode trazer
A confiança das massas
Para nós imprescindível.
É preciso que nos deixem valer
Pois seria mais que temível
Permitir ao caos vencer
Num tempo tão pouco esclarecido!
Algo assim não se pode conceber
Com esse desemprego!
Ou qual a sua opinião?
Só nos pode convir
Esta opinião: o problema
Assim como veio, deve sumir.
Mas a questão é: nosso desemprego
Não será solucionado
Enquanto os senhores não
Ficarem desempregados!
http://www.culturabrasil.pro.br/brechtantologia.htm

Jung e o Teatro

Por Carlos Augusto Nazareth

“Razão e imaginação são partes inseparáveis de um todo complexo em tensão permanente” (CJ)

Já não é novidade nem novo que a construção integral do indivíduo passa pela razão e pela emoção. O nosso objetivo aqui é verificar como o teatro pode ser um dos muitos instrumentos possíveis para a formação integral do ser humano, a partir de um artigo sobre a obra de Jung, escrito por Maria Cecília Sanchez Teixeira.

Jung retoma e de alguma forma relembra e recoloca alguns conceitos que vão se generalizando e, portanto se fragmentando, perdendo sua essência e até adquirindo significados diversos daqueles de sua origem e verdade, como um esgarçamento e pluralidade de um conceito bastante uno e definido em sua origem.

Apenas uma frase de Jung nos coloca frente a um problema corriqueiro e cotidiano que se tornou banal, pois exatamente seu cerne se perdeu e foi adquirindo outro significado.

“O teatro é ‘educativo’ apenas por facilitar e provocar o autoconhecimento e o conhecimento do outro”. (CJ)

Esta colocação nos volta aos conceitos de educar, que tem um sentido muito mais amplo do que hoje a maior parte das pessoas que lidam com esta área por vezes lhe atribuem.

Se estamos pensando em teatro, esta colocação nos remete a Brecht, quando diz em seu Pequeno Organón que “o teatro não foi feito para ensinar”.

E na leitura Jung x Brecht fica claro que o conceito de educar é comum a ambos.Para Jung educação é um processo de autoconstrução da humanidade no sujeito, tanto em sua dimensão individual quanto social, como diz Beatriz Fétizon.

Processo de autoconhecimento, de autoconstrução da humanidade, de “transformação da alma.”

Esta acepção de educar é ampla, e abrange na verdade toda a relação do indivíduo com o mundo e com si mesmo, com seu processo de individuação, mas também com seu processo de integração social.

E esta ampla educação não é a que normalmente usamos quando falamos de criança, de escola, e mais uma série de afirmações esgarçadas de sua essência.

Esta “educação” abrange o ser como um todo em seu processo de construção onde a lógica e a razão têm o mesmo peso que a intuição, a imaginação. Esquerdo e Direito se equilibram na balança dos processos intelectuais.

E sempre voltaremos ao teatro. O teatro tem esta função.

Possibilita que o indivíduo se veja a si mesmo, se pense e se repense, ao mesmo tempo em que é possível ser tocado em sua emoção e sensibilidade, neste seu processo de individuação, mas também permite que o individuo se veja na cena do mundo, num processo de percepção do social.

“Perceber e criar por meio de símbolos são os modos básicos pelos quais o homem organiza suas experiências e ações. Os processos de simbolização permitem ao ser humano assumir sua humanidade, tomar consciência da condição própria dos seres vivos” (CJ).

E para Durand, em As Estruturas Antropológicas do Imaginário “o universo humano é simbólico e só é “humano” à media que o homem atribui sentido às coisas e ao mundo.

Acreditamos que a essência do teatro é simbólico. Mesmo em se tratando do teatro realista, a realidade recriada ali o é muitas vezes através de símbolos. O próprio espaço cênico simboliza a casa, o mar, o universo.

O mesmo espaço cênico, em questão de segundos muda o seu significado porque ele simboliza “N” espaços, que podem se modificar no decorrer de uma trama.

Não queremos aqui fazer uma análise profunda desta questão, pois mereceria um estudo à parte, mas o teatro tem este poder de usar o símbolo, assim como outras artes dramáticas.

Mas nos parece que o teatro tende mais a se utilizar dos símbolos do que o cinema, que a nosso ver tende mais a usar o elemento real na construção de sua fábula.

Tanto que as cenas imperecíveis do cinema são muitas vezes aquelas que utilizam uma forte simbologia, como em La Nave Va, onde o mar é um grande plástico ondulando ao vento quando o espectador esperaria um mar realista.

Esta ruptura da linguagem mais tradicional causa um impacto e um significado muito maior que a imagem do mar. Da mesma forma que no teatro hoje, quando se utiliza imagens reais, como a do mar mesmo, em cena, em projeções, causa uma estranheza que provoca um redimensionamento da cena.

A abordagem de Jung sobre seu “pensamento pedagógico” é tão próxima por vezes do teatro que dele toma algumas questões. “Nesse jogo entre o individual e o coletivo, para driblar a individualidade, a psique coletiva se mascara da psique individual”.

A essa máscara Jung denomina PERSONA, considerando-a um segmento arbitrário da psique coletiva.

E persona é como se designava originalmente a máscara usada pelos atores, significando o papel que desempenhavam no teatro, portanto o segmento naquele momento aflorado e ampliado – a persona, o personagem que se constrói a partir do todo – é a expressão de uma parte do todo que constitui aquela fábula e esta fábula está, ao mesmo tempo, inserida num macro texto universal.

Seria ela um micro texto constituinte do macro texto que nos revela o universo.

Jung diz “a individuação não nos separa do mundo, mas faz o mundo parte de nós, precisamos conhecer a sociedade para a qual educamos – no sentido de preparação do indivíduo para viver o todo que somos e que muitos atribuem a um falso conflito entre razão e imaginação.

Na verdade são partes inseparáveis de um todo complexo em permanente estado de tensão. Quando se valoriza mais um dos pólos, rompe-se a relação de complementaridade e antagonismo entre eles, criando-se a ilusão de que são dicotômicos.” (CJ)

Como estamos nos reportando ao teatro, esta tensão equilibrada necessária é que coloca Aristóteles quando diz que a tensão equilibrada entre razão e emoção é que torna o “drama” equilibrado e, por conseguinte, temos uma fábula conseqüente.

A arte, e principalmente o drama, pode ser um instrumento de reequilíbrio entre razão e emoção. O épico mais o lírico, segundo Hegel, constroem juntos o drama (ação).

Aristóteles diz que a “mimesis” não é uma reprodução das ações, mas uma reprodução dos sentimentos que provocam as ações. Ações, portanto, são geradas pela razão e pela emoção e esta é a essência do drama, a essência do teatro.

O equilíbrio entre razão e emoção na construção integral do ser humano não pode prescindir da Arte, como também não pode prescindir da razão – o equilíbrio e tensão entre estes dois pólos mantêm a unidade e integridade do indivíduo.

O teatro é isto exatamente e propicia que espectador vivencie esta tensão redentora; se rever e rever o mundo através desta ótica.

Mas claro não só o teatro – o teatro é aqui, neste momento, nosso foco, mas a Arte e todas as linguagens que propiciam o desenvolvimento da imaginação, do sentimento, possibilitam, num processo de troca e tensão, um equilíbrio com a razão.

Portanto mais do que já dito visto e revisto que o homem, para sua formação integral depende da Arte.

O teatro é uma arte bastante completa que abrange de forma totalizante esta sua função quando trabalha com diversos tipos de linguagem artística que formam a tessitura teatral.

Autoconhecimento e adaptação ao mundo são os dois pólos em torno dos quais giram as propostas de educação Junguianas.

Educar para Jung é um processo relacional, em que não é a ciência ou a técnica que contam, mas a personalidade do educador, pois, o que está em jogo é a formação da consciência e da personalidade do indivíduo.

E este pensamento Junguiano deve estar presente na construção do espetáculo teatral.

Ele deve contribuir para esta formação da consciência e personalidade do individuo, se não, corre o risco de se tornar um discurso vazio e este “discurso” teatral só se torna denso e modificador quando tomado como Obra de Arte.

“É possível imaginarmos uma pedagogia que reintegre razão e imaginação, que equipare pensamento simbólico ao pensamento lógico, que estimule a sensibilidade, que ative fantasias, utopias e mitos que possam ser compartilhados por todos?“ (CJ)

Jung trata do indivíduo e do todo, o teatro fala do indivíduo e do todo - talvez este paralelismo seja tão propício a um estudo do teatro à luz de algumas idéias Junguianas que, com certeza, nos ajudarão a entender melhor a função do teatro. www.cepetin.com.br